Terapia ocupacional em tempos de pandemia: seguridade social e garantias de um cotidiano possível para todos/
DOI:
https://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoED22802Resumo
A pandemia causada pelo SARS-CoV-2 tem implicado o esforço de todas categorias profissionais se posicionarem frente aos seus papéis no lidar com a CoVID-19, reafirmando e mesmo recolocando a potência de suas contribuições diante da complexidade das exigências postas pelo momento que vivemos. Nesta direção, a área de terapia ocupacional tem participado de tal processo com diferentes manifestações, visando à atenção ao cotidiano dos sujeitos, que, em seus diferentes modos de viver, têm em comum a necessidade de distanciamento social imposto pela transmissão acelerada do vírus e pelas debilidades e impossibilidades dos sistemas de vigilância sanitária e epidemiológica em muitos países. Não obstante, consideramos relevante pontuar nossa função no âmbito da seguridade social, em consonância às políticas sociais e, especialmente, abordando situações sociais que envolvem as importantes diferenças e desigualdades que a maioria das pessoas, grupos e comunidades com quem atuamos vivencia, especialmente no Brasil.
A Federação Mundial de Terapeutas Ocupacionais (World Federation of Occupational Therapists) lançou um posicionamento público sobre a resposta de terapeutas ocupacionais à pandemia de CoVID-19, assinalando o profundo impacto nas vidas, saúde e bem-estar dos sujeitos, famílias e comunidades ao redor do mundo. Enfatiza o papel dos terapeutas ocupacionais nas atividades diárias dos sujeitos, seus significados e propósitos para a vida. Desta forma, ressalta a relevância da produção de estratégias para facilitar o desenvolvimento das “ocupações”, em sua linguagem original, com destaque para as adaptações para a realização das “ocupações”, para aspectos do sofrimento psíquico e da saúde mental que envolvem essa pandemia, para a divulgação de tecnologias assistivas e para a viabilização de teleatendimentos como um novo formato de trabalho (World Federation of Occupational Therapists, 2020).
Também nesse sentido, o Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (COFFITO) regulamentou a teleconsulta, o telemonitoramento e a teleconsultoria por meio da Resolução no 516, de 20 de março de 2020, como modalidades possíveis de trabalho, a fim de permitir a continuidade de ações para alguns grupos populacionais assistidos por terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas (Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, 2020a). Novas modalidades de cuidado (Malfitano & Sakellariou, 2019) têm sido criadas para buscar garantir que não haja interrupção do atendimento a grupos específicos. A Associação Brasileira de Terapeutas Ocupacionais (ABRATO) manifestou sua preocupação com a defesa de condições para a atuação profissional nesse cenário, bem como assinalando suas contribuições e declarando a presença de terapeutas ocupacionais na linha de frente do combate à pandemia seja no Sistema Único de Saúde (SUS), no sistema privado de saúde, no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), em instituições do terceiro setor, em projetos sociossanitários e, ainda, em projetos culturais e humanitários (Associação Brasileira de Terapeutas Ocupacionais, 2020).
Com foco especificamente no cotidiano dos sujeitos, a Associação Australiana de Terapeutas Ocupacionais publicou um guia denominado “Vida normal tem sido interrompida: manejando rupturas causadas pela COVID-19” (Occupational Therapy Australia, 2020), traduzido para o português pela Associação Cultural dos Terapeutas Ocupacionais do Estado do Paraná (ACTOEP), sob o título “Orientações práticas para rotinas saudáveis: aprendendo a lidar com as mudanças de rotina devido ao COVID-19” (Associação Cultural de Terapeutas Ocupacionais do Estado do Paraná, 2020), sistematizando informações importantes para a organização da vida diária em termos de produtividade, autocuidado, lazer, ambiente, rotina e o exercício pessoal de diferentes papeis. O guia indica recomendações práticas para a realização das atividades diárias no isolamento doméstico, juntamente com orientações e sugestões para a manutenção da saúde física e mental.
Considerando o lócus prioritário das ações em terapia ocupacional, ou seja, os cotidianos, as atividades, os fazeres ou as ocupações dos sujeitos, alguns materiais direcionados a populações específicas têm igualmente sido produzidos, sem o foco na terapia ocupacional, mas com a participação e/ou colaboração destes profissionais em sua autoria, voltados a grupos e/ou temáticas com as quais trabalhamos, tais como: saúde mental (Universidade Federal de São Carlos, 2020a), autismo (Universidade Federal de São Carlos, 2020b), ergonomia (Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, 2020b), dentre outros.
Assim, demarcando a relevância de todas essas iniciativas e contribuições, igualmente pontuamos a necessidade de terapeutas ocupacionais lidarem com a dimensão da desigualdade social, com o alastramento do vírus e da doença em comunidades empobrecidas nas periferias das cidades, por exemplo nas favelas, trazendo grandes desafios para o exercício do distanciamento social, em si, bem como para a manutenção material da sobrevivência, ali onde “há naturalização do risco de vida” (Associação Brasileira de Saúde Coletiva, 2020), com a atenção a grupos como pessoas em situação de rua, migrantes, albergados, detentos e prisioneiros, com alguns efeitos deste processo, como o triste aumento da violência doméstica (Vieira et al., 2020), entre outras inúmeras situações. É neste contexto que defendemos uma atuação de terapeutas ocupacionais e de outros profissionais que se paute pela noção e defesa da seguridade social.
A seguridade social é prevista na Constituição Brasileira, no seu Artigo 194, envolvendo um conjunto integrado de iniciativas para assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social (Brasil, 1988). A relevância deste princípio legislativo nacional está em determinar que apenas por meio da integração de tais direitos sociais é que se pode contemplá-los para a vida social de todos, ou seja, a “Saúde” requer ações da “Previdência”, garantindo meios para a sobrevivência, ao menos, dos trabalhadores, independentemente de sua condição de doença e/ou velhice, e, igualmente, ações de “Assistência Social”, visando à segurança do acesso aos bens sociais básicos a todos cidadãos. A seguridade social só se realiza por meio de políticas e programas sociais que esses três setores de ações e serviços devem garantir o acesso e/ou disponibilizar aos cidadãos. Ainda, é importante destacar a conexão com a “Educação”, regulamentada por meio do Artigo 205 da Constituição, que simultaneamente se conecta aos demais direitos e setores, se fazendo possível nesta integração, assim como os possibilitando.
Portanto, precisamos também abordar o papel dos profissionais no SUAS, no Instituto Nacional de Previdência Social (INSS), no Sistema Prisional ou Sociojurídico, nas escolas, nos diferentes setores de ação territorial e comunitária, em organizações não governamentais de interesse público. Mais do que nunca é preciso que usemos nossos espaços, nossas ações e nossas vozes para problematizar o que vem ocorrendo para o acesso aos benefícios sociais essenciais para a manutenção das vidas de tantos sujeitos e, consequentemente, para a viabilização de seus cotidianos. O desafio é fazer valer a centralidade da seguridade social, também em seus aspectos da assistência social como direito da cidadania e dever do Estado e da sociedade, para o quê a compreensão sobre as dimensões sociais em torno do isolamento/distanciamento social (Bezerra et al., 2020) e o engajamento em campanhas/ações fundadas na solidariedade entre os sujeitos são requisitos.
Tal defesa coaduna-se com o pressuposto de que é por meio dos direitos sociais, pela seguridade social, que poderemos abordar os cotidianos, as atividades, os fazeres, as ocupações dos diferentes sujeitos, grupos e comunidades. Assim é que a defesa das políticas públicas sociais, notadamente da saúde pública, da previdência e da assistência social, compõe os tempos de pandemia que atravessamos e nos lança para além da adaptação e organização da vida diária de todos nós, desafiando terapeutas ocupacionais a tecer relações entre contextos, políticas e vidas.
Finalizamos na afirmativa que o trabalho em terapia ocupacional, nos cotidianos dos sujeitos, só se concretiza na luta pela vida possível para todos, em todas as potências e diferenças que lhes dão significado e fazem diminuir as desigualdades, o que, necessariamente, envolve a defesa da seguridade social e nosso papel profissional nela.
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